Entre 2020 e 2022, na cidade do Rio, pelo menos 26 trabalhadores imigrantes em situação análoga à escravidão, vindos da China, Venezuela, Paraguai e República Democrática do Congo, foram atendidos pelo Projeto Ação Integrada, em parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. O maior número de casos de trabalho escravo no Estado do Rio, atualmente, está concentrado no município de Campos dos Goytacazes e São Francisco de Itabapoana. Um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi base de um seminário realizado este mês na Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra1) sobre o assunto. Um dos pontos destacados durante o debate foi a questão racial, na qual a maioria dos trabalhadores imigrantes escravizados são negros e africanos.
“O seminário teve muita importância porque a gente pode discutir com os juízes e com a academia as repercussões da alteração do artigo 149, que faz 20 anos esse ano. A partir disso, que houve a inclusão de novos elementos tipificadores do crime de trabalho análogo escravo, que é a jornada exaustiva, a dívida, o trabalho forçado, condições degradantes, mais há uma percepção de quanto o trabalho escravo no Brasil é uma questão estrutural”, disse Guadalupe Couto, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Segundo ela, não houve a verdadeira abolição da escravatura e ainda há empresas que se utilizam dessa forma exploratória de trabalho. “Como exemplos de cidades no Rio mais afetadas, temos Campos e São Francisco por terem o maior número de trabalhadores resgatados de 1995 a 2022. Isso porque lá existe o cultivo da cana de açúcar, então há um alto índice. Mas no Rio capital também resgatamos muitas pessoas em condições análogas. São muitos casos de domésticas submetidas a essa condição, casos de trabalhadores escravizados até mesmo em grandes eventos, como Rockn Rio e Carnaval, no Sambódromo”.
Guadalupe enfatizou que a maioria dos escravizados são negros. “A porcentagem de negros no trabalho escravo é ainda maior, mas isso não significa que não há trabalhadores amarelos, como chineses ou brancos, também resgatados. A maioria também tem baixa escolaridade, então essas pessoas se submetem a essas condições justamente porque precisam de um emprego e um meio de garantia de subsistência”.
De acordo com o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas no Brasil, 34% das vítimas têm até o 5º ano incompleto e 28% são analfabetos. “Os imigrantes são ainda mais vulneráveis porque se não tiverem documentos para estadia ou se estiverem em situação irregular, não sabem onde buscar ajuda e acabam sendo vítimas fáceis para esse tipo de exploração”, explicou a juíza Daniela Muller, também diretora do Amatra1.
Ela declarou que de seis anos para cá está havendo um desmonte da fiscalização. “Aqui no Rio, os índices mostram números baixos de resgate e denúncia, no fundo isso não é bom porque sabemos que os casos acontecem e é um indício de que a fiscalização está enfraquecida. Os trabalhadores nacionais nessa situação é bastante comum e frequente o deslocamento. Por exemplo, há quatro anos os nordestinos eram explorados em bares e restaurantes do Rio”.
Thaiany Motta, assistente social do Projeto Ação Integrada RJ (ProjAI) explicou que o Rio é porta de entrada e saída de pessoas, por isso atrai ainda mais pessoas em busca de uma vida melhor. “Recebemos hoje muitos imigrantes internos, nordestinos, nortistas e até mesmo mineiros. Curiosamente o número coincide com os dados de trabalho análogo no Brasil. Essas pessoas chegam aqui na cidade em busca de trabalho e melhorias e acabam sendo enganadas, vivendo em condições degradantes, com jornadas extensas de trabalho”.
Ela também ressaltou que os imigrantes internacionais são os mais expostos e vulneráveis. “Há muitos venezuelanos, congoleses, público da América Latina em geral. O setor de trabalho que eles são empregados é diverso, de comércio a trabalho na praia. Os que mais sofrem são os africanos, que são encontrados em piores situações”.
Segundo Thaiany, ao serem resgatadas, as vítimas relatam violência psicológica, física, condições degradantes de trabalho, falta de acomodação e, quando há comida, é estragada. Tudo isso junto a muitas horas de trabalho. “Às vezes confiscam qualquer tipo de benefício social, como bolsa família. Isso é uma forma de garantir a servidão e acabar com a rede de apoio daquela pessoa”.
O estudo
De acordo com o professor Ricardo Rezende, coordenador do grupo de pesquisa, os estudos realizados encontram-se ligados a imigrantes estrangeiros. “Eu queria saber como os congoleses se inserem na esfera do trabalho chegando ao Brasil e se alguns poderiam ser submetidos ao crime previsto pelo artigo 149 do Código Penal – elementos que caracterizam redução à condição análoga à de escravo- “.
Ricardo explicou que, como outros estrangeiros, percebeu que os congoleses no Rio vivenciaram experiências complexas nas relações do imigrante com a comunidade envolvente e com o trabalho. “Além disso, eles tiveram dificuldades e medos e estabeleceram negociações consigo mesmo e com o outro, superando ruídos nas relações pessoais, institucionais e construindo um novo modo de ser e viver”.
O professor acredita que “a mudança do artigo 149 do Código Penal foi reveladora porque colocou o Brasil com a legislação mais avançada, mas isso não é suficiente se os procuradores e juízes não perceberem”. Ele também defendeu que municípios e estados precisam se envolver com o problema, bem como os parlamentos municipais e estaduais.
Para a sua pesquisa, foram entrevistados 26 congoleses da República Democrática do Congo, destes seis concluíram no Congo o curso superior; 12 o ensino médio. Um se formou em enfermagem e cursava turismo no Brasil; havia quem era graduado em Ciência Política e Administração, em economia, em contabilidade, em medicina, entre outros. No Brasil, de acordo com Ricardo, não foram absorvidos nas áreas das especialidades, mas os homens e algumas mulheres conseguiram trabalho em circunstâncias exaustivas e degradantes.
“Se objeto de fiscalização, enquanto estavam no trabalho, provavelmente o Ministério Público do Trabalho e os Auditores Fiscais compreenderiam que eram vítimas do trabalho análogo à de escravo, como prevê o artigo 149. Quando saíram do Congo, um deles afirmou que só estudava. Ele fazia engenharia de petróleo e gás”, explicou ele, que estuda a escravidão contemporânea desde 1977, quando foi morar no sul do Pará e ali descobriu o crime.
Sobre os congoleses em trabalho escravo, Ricardo disse que a discriminação sofrida por eles não era pela etnia, mas especialmente pela cor da pele e pelo continente de onde vieram. “Sofreram mudanças e intervenções nos seus hábitos e em suas culturas. Eles sofreram preconceitos, foram submetidos a condições degradantes e humilhantes e tiveram que lidar com o fato de serem imigrantes”.
Ele ainda indagou e completou dizendo que, se esses imigrantes tivessem os olhos claros e a pele branca, com a formação que tinha, talvez pudessem conseguir outros trabalhos, assim como os sírios. “Mas com a cor de pele e a origem africana, eles eram tratados como se fossem menos inteligentes, menos preparados e aptos ao trabalho mais pesado. Na pesquisa observamos parte destas complexas relações e, especialmente, como foram estranhados pelos nativos”
Lei 149
Durante o seminário no Amatra1, Daniela Muller informou que, só em 2003, com a nova redação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é que a legislação para o combate ao trabalho escravo torna-se mais específica. Enquanto a redação original, do CPB de 1940, falava apenas em “reduzir alguém à condição análoga à de escravo: pena – reclusão de dois a oito anos”, a nova redação incorporou outras modalidades, tais como submeter alguém a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho, ou restringir a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador. As penas continuam as mesmas.